Caverna de Macpela

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Com a morte de Sara, Abraão se vê em uma situação um tanto urgente. Ele precisa de um local para enterrar sua esposa. A solução encontrada foi a de comprar uma caverna. Era um costume dos nômades semitas, do início do 2º milênio (e final do 3º) sepultar seus mortos em cavernas familiares. O corpo era colocado numa prateleira até se decompor (acompanhava vasos cerâmicos, comidas, joias sem valor, armas, ferramentas, etc.), então seu corpo era retirado e seus ossos colocados numa caixa e, assim, deixava-se a câmara livre para um novo sepultamento.

Esse processo durava cerca de um ano e foi usado por séculos, até a época de Jesus. Por isso quando um pretenso discípulo pede que deixe enterrar seu morto para depois seguir Jesus, ele estava se referindo a esse processo, que durava um ano. Mas Jesus revida: Segue-me, e deixa os mortos sepultar os seus próprios mortos. (Mateus 8.22) Jesus não estava pedindo para não enterrar um morto, mas para abandonar esse processo, que não levava a nada.

A etimologia do nome hebraico, Me’arat Machpelah, é incerta. A palavra Macpela significa “dobrado”, “multiplicado” ou “duplo” e Me’arat significa “caverna”, de modo que uma tradução literal seria simplesmente “a caverna dupla“. O nome pode aludir à distribuição interna da caverna, que podia consistir em duas ou mais câmaras conectadas. Essa hipótese é discutida no tratado Eruvin, do Talmude Babilônico do século VI d.C., que cita uma discussão entre dois rabinos influentes, Rav e Shmuel , debatendo sobre o layout da caverna:

A propósito desta disputa, a Gemara cita disputas similares entre Rav e Shmuel. No que diz respeito à Caverna de Macpela, na qual os patriarcas e matriarcas estão enterrados, Rav e Shmuel discordaram. Um deles disse: A caverna consiste em dois cômodos, um mais distante que o outro. E um deles disse: consiste em uma sala e um segundo cômodo acima dele. A Gemara pergunta: Concedido, isso é compreensível de acordo com quem disse que a caverna consiste em uma sala acima da outra, pois esse é o significado de Macpela, dupla. No entanto, de acordo com quem disse que consiste em duas salas, uma mais distante que a outra, qual o sentido de Macpela? Mesmo casas comuns contêm dois quartos.

O tratado continua discutindo outra teoria, segundo a qual o nome deriva do túmulo dos três casais, Abraão e Sara, Isaque e Rebeca, Jacó e Lia:

Pelo contrário, chama-se Macpela no sentido de que é dobrada com os patriarcas e matriarcas, que são enterrados lá em pares. Isso é semelhante à interpretação homilética do nome alternativo para Hebrom mencionado na Torá: “Mamre de Kiryat Ha’Arba, que é Hebron” (Gênesis 35.27). O rabino Yitzak disse: A cidade se chama Quiriat-Arba, a cidade dos quatro, porque é a cidade dos quatro casais enterrados lá: Adão e Eva, Abraão e Sara, Isaque e Rebeca, e Jacó e Lia.

A lenda judaica é de que Adão e Eva foram enterrados na Caverna de Macpela. Abraão teria escolhido esse lugar especificamente porque quando entrou lá viu que o primeiro casal estava enterrado naquele lugar, e que o lugar estava impregnado pelo aroma do Paraíso. Diz-se também que é a entrada para o Jardim do Éden, usada pelas almas que partem dessa vida. Por causa disso é que Abraão teria insistido tanto em adquirir o campo com a caverna.

A terra apropriada para o plantio era muito valiosa e os proprietários não vendiam para estrangeiros, só para pessoas de dentro da família. Estrangeiros não tinham direito à terra, principalmente nômades. Por isso o patriarca precisava negociar a compra da caverna. Porém Abraão não era qualquer nômade. Ele era um nômade muito rico, com um exército bem treinado e fortemente armado, o que causava desconforto em seus vizinho, além de temor. Caso clássico é o acordo firmado com o rei de Gerar, Abimeleque.

Campo pronto para o cultivo

Abraão quis comprar somente um pequeno pedaço para sepultar Sara, porque comprar o campo inteiro traria responsabilidades financeiras e sociais. As leis hititas estipulavam que se o dono do campo vendesse só um pequeno pedaço, ainda deveria pagar os impostos e arcar com a responsabilidade. Mas se vendesse o campo todo, a responsabilidade financeira seria do novo dono. Por isso Efrom insistiu tanto em vender toda a propriedade para Abraão. Além disso, ele dever ter aceitado vender porque via em Abraão uma autoridade social, já que o chamou de “príncipe”.

O verso 23.6 de Gênesis retrata Abraão como um chefe, assim como em outras ocasiões. Aqui o texto é consideravelmente mais explícito sobre esse assunto. Neste verso, os hititas de quem Abraão compra o terreno dizem a ele: “Você é um poderoso príncipe entre nós.” A palavra “príncipe” (no hebraico nāśī’) designa um homem que foi elevado “na ou pela assembleia”, portanto “eleito”; aqui um título de honra. Abraão e Sara são claramente descritos como os fundadores de uma linhagem real (Gn 17.6, 16), e o círculo em que eles se movem é aristocrático. Socialmente, eles lidam com o faraó e o rei filisteu de Gerar. Além disso, o papel de Abraão é de um rei, funcionando como comandante em chefe de uma coalizão contra outra coalizão de reis (Gn 14).

O retrato de Abraão em Gênesis de um chefe é tão evidente que o antigo historiador Nicolau de Damasco chegou a ponto de se referir a ele como rei de Damasco. Se esta avaliação de Abraão como um chefe (embora não necessariamente um monarca de pleno direito) é precisa, então há ainda maiores razões para acreditar que ele, seu filho e seu neto poderiam ser contados entre a rica elite aristocrática em Canaã.

Xilogravura  que descreve o enterro de Sara na caverna de Macpela. Gustave Doré, 1832-1883

Abraão negocia o campo com um dos anciãos da cidade de Hebrom. Sabemos que era um homem importante porque estava à porta da cidade, onde todos os acordos comerciais e civis eram realizados. Efrom pede o valor exorbitante de 400 siclos de prata. Não podemos esquecer que não havia dinheiro nessa época. A cunhagem de moedas só começou a ser realizada a partir do séc. VII a.C. No período patriarcal o costume era o peso de metais preciosos, ou seja, cada mercadoria tinha seu valor de acordo com o peso de cada metal. A prata era mais valiosa do que o ouro, porque era mais difícil de encontrar, por isso boa parte das negociações eram feitas com prata.

O siclo, embora não tivesse uma uniformidade de medida, pesava em média entre 11,3 g e 11,47 g.

Abraão, depois de recusar o campo gratuitamente, concordou com os termos de Efrom e pesou para ele o preço que ele havia nomeado na audiência dos hititas: 400 siclos de prata (pouco mais de 4,5 kg) , de acordo com o peso atual entre os comerciantes. Champlin defende que a oferta de Efrom e a recusa de Abraão faziam parte da etiqueta de negociação do Antigo Oriente, e que a venda o campo era o objetivo desde o princípio. Entretanto, não temos base arqueológica para sustentar essa versão.

Dois aspectos desta transação são refletidos na vida econômica do mercador contemporâneo. Primeiro, um texto comercial antigo babilônico da Sippar apresenta a seguinte declaração, que fornece um paralelo grosseiro com a frase bíblica: “De acordo com o mercado (preço) de Eshnunna ele (Adad-rē’m) pagará prata”. Segundo, um contrato de negócios entre dois marcadores do reinado de Rim-Sin estipula: “No cumprimento da jornada eles pesarão a prata e o lucro dela”, assim como Abraão “pesou a prata para Efrom, os 400 siclos de prata”.

Dracma a rosto de Melqart, o deus pagão da cidade de Tiro

A caverna de Macpela, perto de Hebrom, já era bastante conhecida na antiguidade como a sepultura dos patriarcas e a tradição foi passada por gerações. Josefo afirma que na sepultura de Sara foi construído um túmulo pelos seus descendentes. O primeiro registro histórico de construção no local é do rei Herodes, que construiu a base da atual estrutura, que tem grande similaridade arquitetônica com o templo reformado por ele em Jerusalém (37 – 4 a.C.). É a única estrutura herodiana totalmente sobrevivente do período do judaísmo helenístico.

O edifício de Herodes, com paredes de pedra de 1,80 m de espessura, feitas de pedras com pelo menos 91 cm de altura e às vezes atingindo 7,3 m, não tinha teto. Os arqueólogos não sabem ao certo onde estava localizada a entrada original do recinto, ou mesmo se havia uma.

Ilustração do Túmulo dos Patriarcas

Até o Império Bizantino, o interior do recinto permaneceu exposto a céu aberto. No período de Justiniano (começo do século VI d.C.) foi construída uma igreja cristã bizantina no local, e há diversos relatos de visitas turísticas ao local ainda nesse mesmo século. Durante esse período, o local se tornou um importante destino de peregrinação cristã. O Peregrino de Bordaux, em 333 d.C., relatou “um monumento de forma quadrada construída em pedra de uma beleza maravilhosa, na qual jazem Abraão, Isaque, Jacó, Sara, Rebeca e Lia”. O peregrino de Piacenza (570 d.C.) observou em sua peregrinação que judeus e cristãos compartilhavam a posse do local.

Em 614 d.C., os persas sassânidas conquistaram a área e destruíram a construção no local, deixando apenas ruínas. Mas em 637 d.C., a área caiu sob o controle dos muçulmanos árabes e o edifício foi reconstruído como uma mesquita coberta. Os muçulmanos permitiram a construção de duas pequenas sinagogas no local.

No ano de 670 d.C., Arculfo registra a presença de mausoléus com túmulos vazios como ponto de visitação (chamados de cenotáfios). Em 980 d.C. Muqadasi também citou esses túmulos onde haviam sido construídos, e que foram removidos somente em 1967 d.C., já sob domínio judeu, e colocados no local em que se encontram hoje.

Durante o século X d.C., uma entrada foi perfurada através da parede nordeste, um pouco acima do nível do solo externo, e foram construídos degraus na direção do norte e do leste (um conjunto de degraus para entrar e outro para sair). Um edifício conhecido como qal’ah (castelo) também foi construído perto no lado sudoeste. Seu objetivo é desconhecido, mas um relato histórico afirma que marcou o local onde José foi enterrado (o relato bíblico é de que José foi enterrado em Siquém). Alguns arqueólogos acreditam que a entrada original da estrutura de Herodes estava na localização da qal’ah. De acordo com Nasi-i-Kosru, o califa Hahdi, em 1047 d.C., foi quem construiu a entrada atual.

A mesquita de Hebron sobre a caverna de Machpelah de John Fulleylove

Em 1100 d.C, as Cruzadas cristãs, que partiram da Europa, tomaram o controle de Hebrom e do Túmulo dos Patriarcas. O recinto voltou a ser uma igreja e os muçulmanos não tiveram mais permissão de entrar. Durante esse período, a área recebeu um novo telhado de duas águas, janelas de clerestory e abóbadas. Quando os cruzados assumiram o controle do local, os judeus foram proibidos de usar as sinagogas.

No ano de 1113 d.C., durante o reinado de Balduíno II de Jerusalém, de acordo com Ali de Herat (escrevendo em 1173 d.C., ou seja, cerca de 60 anos depois), afirmou que uma parte da caverna de Abraão havia cedido e “vários francos haviam caído nela”. E eles descobriram “(os corpos) de Abraão, Isaque e Jacó”, “suas mortalhas caindo aos pedaços, apoiadas contra uma parede… Então o rei, depois de fornecer novas mortalhas, fez com que o local fosse fechado novamente”.

Informações semelhantes são fornecidas nas Crônicas de Ibn al Athir no ano de 1119 d.C.: “Neste ano foi aberto o túmulo de Abraão, e os de seus dois filhos Isaque e Jacó… Muitas pessoas viram o Patriarca. Seus membros haviam sido perturbados e, ao lado deles, foram colocadas lâmpadas de ouro e prata”. O nobre e historiador de Damasco Ibn al-Qalanisi em sua crônica também alude, neste momento, à descoberta de relíquias que se supõe serem as de Abraão, Isaque e Jacó, uma descoberta que despertou uma curiosidade ansiosa entre as três comunidades, muçulmana, judaica e cristã, ao sul do Levante.

Vários visitantes ilustres foram ao Sepulcro dos Patriarcas neste período. Maimônides em 1166 d.C. e Benjamim de Tudela em 1170 d.C.

Porém em 1188 d.C., Saladino retoma o controle da área das mãos dos cruzados, os expulsando da cidade de Hebrom, mas permitindo que os cristãos continuassem adorando lá. Saladino também adicionou um minarete em cada esquina, dois dos quais ainda sobrevivem, e o minbar (um tipo de púlpito elevado). Samuel ben Samson visitou a caverna em 1210 d.C. e afirma que “era necessário o visitante descer vinte e quatro degraus em uma passagem tão estreita que a rocha o toca em qualquer mão”.

Um relato, do rabino Benjamin de Tudela, datado de 1163 d.C., afirma que, depois de passar por uma porta de ferro e descer, as cavernas seriam encontradas. Segundo Benjamin de Tudela, havia uma sequência de três cavernas, as duas primeiras vazias; na terceira caverna havia seis túmulos, dispostos em frente um do outro.

Sob o comando dos mamelucos, entre 1318 e 1320, o governador de Gaza, uma província que incluía Hebron, Sanjar al-Jawli fez uma série de construções no local, incluindo escadarias, uma mesquita e outras entradas. No séc. XIV d.C. os mulçumanos selaram as entradas para os túmulos (o que existe hoje é só um monumento vazio na parte de cima). Infelizmente o local foi abandonado por um período considerável, e somente sob o comando otomano é que os túmulos foram restaurados. Ali Bey, um dos poucos estrangeiros a obter acesso, relatou em 1807 que, “todos os sepulcros dos patriarcas estão cobertos com ricos tapetes de seda verde, magnificamente bordados a ouro; as esposas são vermelhas, bordadas da mesma maneira. Os sultões de Constantinopla fornecem esses tapetes, que são renovados de tempos em tempos.” Ali Bey contou nove tapetes, um sobre o outro, no sepulcro de Abraão.

Em 1917 d.C., um oficial britânico teria conseguido visitar os sepulcros através de uma abertura oculta desde o tempo das cruzadas. Com a queda do Império Otomano, a região passou para o controle Britânico. Depois que a Jordânia ocupou a Cisjordânia em 1948 d.C., nenhum judeu foi permitido no território e, consequentemente, nenhum judeu pôde visitar a tumba. Na década de 1960, a Jordânia renovou a área ao redor da mesquita, destruindo vários edifícios históricos no processo. Entre eles, as ruínas da fortaleza dos cruzados nas proximidades, construída em 1168 d.C.

Após a ocupação israelense da Cisjordânia na Guerra dos Seis Dias, Hebrom voltou ao controle dos judeus pela primeira vez em 2.000 anos e a restrição de 700 anos, que limitava os judeus ao sétimo passo.

Foto da atual entrada para o Túmulo dos Patriarcas

Somente no séc. XX foi que o primeiro judeu teve acesso às cavernas mais abaixo. A primeira a entrar, em 9 de outubro de 1968, foi Michal Arbel, filha de 13 anos de idade de Yehuda Arbel, chefe das operações do Shin Bet na Cisjordânia, porque era magra o suficiente para ser abaixada para os estreitos 28 cm. Para obter acesso ao local da tumba, a menina se esgueirou pela passagem e tirou fotografias.

Desde então a Caverna de Macpela tem sido palco de disputas, muitas vezes sangrentas. Em outubro de 1968 uma granada de mão foi lançada pela escadaria por um mulçumano, em que várias pessoas ficassem feridas. Em novembro outra explosão aconteceu. Em 1976 um árabe destruiu pergaminhos da Torá próximo das tumbas, e em 1980 judeus foram feridos em um ataque. No ano de 1981 um grupo de judeus, liderados por Noam Arnon, invadiram o local para tirarem fotos das tumbas.

Na década de 1990 as tensões aumentaram na região depois de acordos realizados pelo estado de Israel. O massacre da Caverna dos Patriarcas, cometido por Baruch Goldstein, um colono israelense-americano em fevereiro de 1994, deixou 29 muçulmanos palestinos mortos e feridos. Os distúrbios resultantes resultaram em mais 35 mortes.

As tensões só diminuíram com os Acordos do Rio Wye, em que 81% do edifício seria de controle mulçumano. Em consequência, os judeus não têm permissão para visitar os cenotáfios de Isaque e Rebecca, que ficam inteiramente na seção mulçumana, exceto por 10 dias por ano, que têm um significado especial no judaísmo.

Foto interna do Túmulo dos Patriarcas mostrando os cenotáfios

O local ainda é controlado pelos mulçumanos, mas as tensões tem crescido novamente com o anúncio do governo israelense de fazer obras de restauração nos prédios históricos. O acesso de turistas é liberado.

Referências Bibliográficas:

  • Champlin, R. N. Antigo Testamento Interpretado: versículo por versículo. 2ª Edição. Editora Hagnos. São Paulo, 2001
  • Bíblia de Estudo Arqueológica NVI. Editora Vida. São Paulo, 2013
  • Unterman, A. Dicionário Judaico de lendas e tradições. Editora JZE. Rio de Janeiro, 1992
  • Stanley, L. Atlas of Bible History. Londres. Editora Collins. 2008.
  • Talmude Babilônico. Eruvin 53a. Disponível em: https://www.sefaria.org/texts.
  • Unesco declares Hebron’s Old City Palestinian World Heritage site. BBC. July 7, 2017.
  • Jewish Virtual Library. The Cave of Machpelah Tomb of the Patriarchs. American-Israeli Cooperative Enterprise. Disponível em: https://www.jewishvirtuallibrary.org/tomb-of-the-patriarchs-ma-arat-hamachpelah. Acessado em: 16/03/2020

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